Por Tatiana Nicz
Alguns anos atrás, para ser mais precisa oito, minha mãe começou a agir de maneira estranha e confusa. Minha irmã, que convivia mais com ela, foi a primeira a notar. Com o tempo também comecei a reparar que minha mãe andava muito confusa. Esse foi o começo de uma longa dura jornada ao desconhecido mundo da neurociência. Eu digo desconhecido porque o que aprendi nesse tempo é que, apesar de tantos estudos envolvendo o funcionamento do cérebro humano, ele ainda é território misterioso. Claro, tivemos muitos avanços, mas muita coisa permanece ainda inexplicável e isso torna qualquer doença nessa área mais complicada.
A primeira dificuldade já veio de cara em encontrar um diagnóstico convincente. Levamos minha mãe em muitos psicólogos, psiquiatras e neurologistas, todos admitiam que o comportamento dela era anormal, mas nenhum soube diagnosticar o que acontecia. Afinal ela tinha 55 anos e uma saúde física impecável sem nenhum histórico aparente de doenças neurológicas na família. Como ela continuava confusa, continuamos fazendo exames. Até que nos indicaram um médico conceituado que só atendia via particular, após alguns exames de cintilografia o médico renomado sem nos decepcionar, deu o diagnóstico: demência no lobo fronto temporal, mais conhecida como demência frontotemporal e usou a palavra degenerativa.
Eu lembro que sai do médico bem atordoada, parecia que tinha levado uma pancada na cabeça. Não lembro exatamente se minha mãe, que estava comigo, se deu conta. A verdade é que eu não tinha entendido a magnitude do que exatamente isso implicaria na sua vida e na minha e pelo visto, os médicos também não. Quando você recebe uma notícia dessas passa mil coisas pela cabeça, na verdade vai um bom tempo para digeri-la, para falar a verdade, dez anos se passaram e acho que até hoje ainda não digeri tudo.
Uma rápida pesquisa na internet e descobri que a demência frontotemporal tem causas desconhecidas e sintomas muito parecidos com Alzheimer, é também uma doença degenerativa que afeta a memória, entre outras coisas, por isso o tratamento é o mesmo. Eu nunca convivi com pacientes de Alzheimer, mas pelo pouco que sei, apesar de ser parecida é diferente e acho que deveria ser melhor estudada e entendida. De lá para cá trocamos de médicos muitas vezes, o coquetel de remédios não parece fazer muito efeito, mas segundo o médico se ela não tomar a doença terá progressão mais rápida ainda e eu não quero fazer esse teste. Então sigo à risca o que os médicos falam.
Existe muita, mas muita desinformação nessa área e informação “torta”, existe também, no meu leigo entendimento, um certo comodismo da medicina e dos médicos, eles dizem é esse o tratamento e pronto. “Não há o que fazer”, dizem eles em unanimidade. E há dez anos seguimos o mesmo tratamento. E ninguém tenta nada diferente e ninguém dá soluções práticas para te ajudar no dia-a-dia. Então tive que me virar sozinha. Porque isso eu aprendi, dar nome para doença não quer dizer que você vai receber também uma cartilha de como lidar com ela. O que sei, aprendi no dia-a-dia, na base de (muito) erro e acerto. O problema é que fazer isso com a tua própria vida até dá para encarar, fazer isso com a vida da sua mãe é um pouco mais difícil.
Então se não havia o que fazer me concentrei em fazer com que ela tivesse qualidade de vida. E graças ao trabalho duro do meu avô, na medida do possível, nós podemos proporcionar isso à ela. Nesse momento eu penso e sinto pelas famílias e pacientes economicamente menos favorecidos, sim porque doença é igual para o pobre e para o rico. O governo dá um dos remédios que é caro para Alzheimer. Todos os outros, também caros, nós compramos. Equipe de cuidadores, tudo isso tem um custo alto.
Eu escrevo esse relato porque tudo que aprendi, aprendi sozinha sem muita orientação. O que os médicos não souberam explicar nem orientar eu fui fazendo por instinto. Porque todos nós temos esse instinto de cuidar do outro. E sei que nem sempre acertei. Então quem sabe minha história (e meus erros) ajude quem também está passando por isso, segue alguns sinceros conselhos:
1. Não subestime a doença:
Qualquer doença que acomete a mente é difícil de entender, mas deve ser levada a sério. A gente se engana com uma aparência saudável. Então tome as devidas providências para evitar acidentes. Um dos meus erros foi ter sido reativa, tomar atitudes só quando a “água batia na bunda” e tentar sempre escutar e respeitar a vontade da minha mãe. Ela morava sozinha, eu sabia que não era bom, mas ela não queria ninguém e eu não soube insistir. O problema é que ela já não tinha total consciência do que era bom ou não. Um dia me ligaram do hospital dizendo que minha mãe havia sido atropelada. Do caminho de casa até o hospital eu sofri muito, eu senti culpa, muita culpa. Esse erro poderia ter lhe custado a vida, felizmente foi apenas um braço quebrado e mais alguns arranhões. A partir desse dia ela nunca mais ficou sozinha. Então não espere para sentir culpa por algo que você poderia ter antecipado e feito, quando achar que tem que fazer, não procrastine, não titubeie, apenas faça.
2. Você vai sentir raiva, tudo bem, sinta raiva.
Você sentirá raiva e se você é capaz de sentir empatia, você também sentirá culpa, muita culpa. Aprenda a conviver pacificamente com elas (acho que quem é mãe entende melhor isso). Viva isso porque faz parte. Se conseguir, seja mais gentil consigo mesmo, perdoe-se. Tente ser paciente, a falta de paciência gera mais culpa. Eu me arrependo de não ter tido mais paciência com minha mãe quando ela esquecia as coisas, quando ela demorava para contar algo e trocava tudo, enfim, em vários momentos. Mas eu sentia raiva, raiva de Deus, raiva dela, raiva de mim porque não conseguia ser melhor e mais paciente com ela. E daí com a raiva vinha a culpa. Enquanto eu lutava contra a raiva e a culpa, elas ganhavam mais força e era uma bola de neve, porque quanto mais raiva eu sentia, menos paciência eu tinha. Então permita-se sentir raiva, sentir culpa e entenda de onde elas vêm. Quando nos permitimos sentir qualquer sentimento mesmo que “ruins”, os sentimentos perdem força. Tome cuidado para não descontar em ninguém e para que esses sentimentos não tomem conta de você. Se fizer, ou melhor, quando fizer, perdoe-se e peça perdão. Respire. Espere. Com o tempo a raiva não passa, mas ela diminui até o ponto de ficar bem mais fácil de conviver com ela e controlá-la.
3. Viva a sua vida.
Essa parte é difícil, porque as pessoas julgam e muito. Porque você se julga, muito. Um paciente com demência não conhece mais limites. E a impressão que tenho é que quanto mais você dá, mais você precisa dar e esse espiral não tem fim. As pessoas olham de fora e pensam que talvez algumas atitudes tuas são egoístas ou injustas. Seja egoísta. Coloque sua vida em primeiro lugar. A pergunta que eu me faço é longa, porém simples: quem está vivendo a minha vida por mim enquanto eu preencho a minha vida com a vida da minha mãe? Então na medida do possível e com amor, coloque limites. E esses limites machucam, mas são necessários. Saiba assumir suas fraquezas e conhecer seus limites, ninguém é super-herói. Aprenda a perder batalhas pelo outro em seu prol. Também aprenda a delegar. Eu levei tempo para fazer isso, com isso sofri mais do que devia, passei mais tempo com raiva do que devia. Quando aprendi, resolvi encerrar essa jornada com minha mãe, por agora. Então minha irmã vai cuidar dela. Quando consegui assumir que cheguei no meu limite sem me sentir derrotada, pude finalizar essa etapa com o coração tranquilo. E quando você não conseguir fazer algo que a “sociedade” acha certo fazer, não se sinta tão culpado, sempre vai ter alguém para apontar seus atos falhos, mas a verdade é que ninguém sabe exatamente o que se passa no seu coração.
4. Para todos e para a vida: não julgue uma batalha que você não está lutando.
Muita gente acha cruel que eu tenha pensado em um lar para minha mãe. Ou que eu não vá visitá-la todos os dias. Moro perto, ligo sempre, vou quando posso. Hoje sei que o maior presente que posso dar para ela é viver minha vida e ser feliz, só assim também valerá a pena o sofrimento dela. Tenho uma consciência tranquila de que fiz o melhor que pude com os recursos que tinha. Algumas vezes não era muita coisa, mas foi o que consegui fazer. Hoje não julgo ninguém que tenha que deixar um parente em um lar. Porque não é uma decisão fácil. Mas independente de idade e em qual momento da vida alguém está, ninguém deve ser privado de viver sua própria vida. E cuidar de alguém com demência toma tempo e dedicação, além de muita paciência. E requer amor, muito amor, um amor incondicional diariamente, coisa que nem sempre estamos bem e somos capazes de dar.
5. As pessoas se vão. Poucos são os que ficam. Não julgue.
Muita gente não sabe lidar com a dor do outro. O que me faz não contar sobre a minha mãe para muita gente é o olhar de pena dos outros. Ninguém sabe validar a dor do outro nem como agir diante de momentos difíceis, o que sabemos é sentir pena e a pena não constrói ninguém, nem quem sente, nem por quem é sentida. Eu falo isso porque comprei esse “papo” e também tive pena de mim, até que entendi que me fazer de vítima não ia curar minha mãe e nem me fazer feliz, porque felicidade é um propósito de vida, é uma escolha que fazemos todos os dias, independente do que está acontecendo em nossas vidas. Então aceite o que a vida lhe traz e na medida do possível viva bem com isso. Não dá para entender o sentido de tudo racionalmente. É triste? Sim. Como muitas outras histórias também são. O que é, é. E o melhor que podemos fazer quando nos deparamos com a dor de outro é dizer: “não posso fazer muito para diminuir sua dor, mas obrigada por compartilhar isso comigo, estou aqui”. O amor deve ser espontâneo e mora nos pequenos gestos, como em um abraço ou no silêncio. O que aprendi com minha mãe é que a maior prova de amor que damos é conseguir amar alguém que não pode lhe dar nada (ou quase nada) em troca. E apesar de parecer que não existe troca hoje, um dia ela existiu. Entre muitas outras coisas, a minha mãe me deu a vida.
6. Cuide de você e viva sua vida com amor.
O Budismo fala muito sobre a impermanência da vida. Aprenda a enxergar a beleza nisso e a aceitar o que lhe é ofertado. É clichê, mas a gente esquece. Não sabemos o dia de amanhã, nem quando um médico vai te dar um diagnóstico que mudará sua vida, nem a vida de quem você ama. Esteja presente e aceite o presente que é a vida. Cuide bem de sua saúde e de sua cabeça. Eu levei tempo para aprender isso.
7. Guarde e conte as boas histórias.
“Malba Tahan conta que dois amigos, Salim e Fahid, viajavam numa caravana para a Pérsia. Ao cruzarem um rio, Salim foi pego na correnteza, e teria morrido se o amigo não o ajudasse. Agradecido, pediu que seus empregados gravassem numa rocha que ficava na margem do rio: “Aqui, Fahid salvou a vida de seu amigo”. Quando voltavam da Pérsia, depois de atravessarem o mesmo rio, uma discussão tola fez com que os dois brigassem. Fahid puxou uma espada, e quase mata o amigo a quem havia salvo meses antes. Depois que os ânimos serenaram, Salim chamou de novo seus empregados e pediu que escrevessem na areia: “Aqui, Fahid tentou matar seu amigo”. “Quando o salvei, você gravou meu gesto numa rocha. Agora, que quase o matei, você escreve na areia. Não vê que o vento logo apagará?”, perguntou Fahid. “Esta é a sabedoria”, respondeu Salim, “Escrever as boas coisas na rocha, e as coisas negativas na areia”.
Como na história, tente guardar os bons feitos e qualidades. Esforce-se para esquecer as historias ruins. Minha mãe nem sempre foi boa para mim, reclamei disso por muito tempo. Hoje nem sempre consigo ser uma boa filha para ela. Porque ser bom o tempo todo é difícil mesmo. Então nós precisamos aprender a guardar as coisas boas e com o tempo isso vai acontecendo naturalmente, hoje lembro com muita clareza de como ela era bela e valente, vaidosa, honesta e de como gostava de fazer caridade.
8. Cada paciente é diferente.
Com o tempo aprendi a entender os médicos, realmente não existe uma receita pronta que vai te ajudar a lidar com a doença. É puro instinto e bom senso. Porque mesmo que a doença seja uma ela se manifesta de algumas maneiras diferentes de acordo com o paciente. Minha mãe apresenta sintomas que os médicos não sabem explicar. Por exemplo, mesmo em estágio mais avançado da doença, ela se alimenta bem, faz tudo sozinha (claro, com orientação) e é extremamente carinhosa, não tem nenhum traço de agressividade.
9. Conte com a ajuda de profissionais.
Se você tiver condições financeiras contrate profissionais para te ajudar. Os familiares têm uma relação diferente com o paciente e carregam uma carga emocional muito grande. Cuidadores profissionais podem ter paciência e calma que nem sempre nós familiares temos. E o paciente precisa de pessoas pacientes e calmas. Eu tive muita sorte com todas as cuidadoras e só tenho boas histórias. Elas amam minha mãe e cuidam com muito cuidado dela.
10. Aprenda o valor das palavras “mágicas” e use-as.
Palavras que aprendemos desde criança e que fazem diferença em nosso dia-a-dia. Não as esqueça, pois minha mãe não as esqueceu. Hoje ela não fala mais nada com coerência, ou melhor, quase nada. Existem três frases que ela usa com muita coerência: todos os dias que ela me vê ela me olha e repete “Você é linda. Obrigada. Eu te amo”.
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