A vida em sociedade requer padrões para “bem viver”, e isso é normal, contudo há uma padronização nada saudável e imposta de pessoas, de hábitos, de conceitos, de tudo. A autenticidade não é bem aceita, parece. Não há normalidade em ser diferente dos demais, embora sejamos humanos singulares, mas verdadeiro desafio. Diferir dói. Ser diferente de quem dita as normas, dá as cartas no mundo e influencia pensamentos é pior ainda.
De acordo com as classes sociais de maior prestígio é determinado o que é certo ou errado, devido ou indevido na sociedade. Se meus pais – humildes desde a origem – quisessem algum dia influir na gênese dos pensamentos alheios seria sumariamente vão. E por que eles não poderiam influenciar? O motivo é bem simples: falta tostão. Nenhum deles guarda o componente do “sucesso”. Esse sim confere autoridade e respeito a alguém, e há uma fórmula bastante questionável para defini-lo.
Em algum momento da História fomos levados a acreditar que sucesso está atrelado à condição socioeconômica. A ideologia perversa que enxerga o acúmulo de riquezas acima de qualquer coisa, que classifica pessoas de acordo com o dinheiro que elas têm, que alimenta o individualismo e a postura do “cada um por si” certamente que nutriu a raiz desse pensamento frágil, assim como o surgimento de expressões aparentemente inofensivas, como a de ser “alguém na vida”. Ora, caro amigo, se não somos gente, o que somos então? É óbvio que somos alguém. Por que essa desumanização de quem não tem dinheiro e status? A quem ela serve? A quem ela prejudica? Essa ideia faz muito sucesso, mas é um crasso equívoco. Esse é um conceito raso, equivocado, forjado em preconceito. Sendo ou não místico, tendo ou não alguma fé transcendente, temos condição humana. Somos igualmente gente, igualmente alguém. Nascemos, respiramos, comemos, adoecemos, sentimos, sangramos, relacionamo-nos, morremos. De nada adianta ser rico ou pobre, a condição humana é equivalente. Somos da mesma raça.
Há uma falácia, a de que quanto mais você consome e tem, mais você será feliz. Antes até os economistas divulgavam isso, que era só estimular a compra que faríamos o desenvolvimento de qualquer país através do consumo. Além disso, acreditávamos que seríamos mais felizes também assim. Vimos com o tempo que não é dessa forma. Até alcançar o básico para viver (moradia, alimentação, segurança, saúde, por exemplo) o dinheiro ajuda a construir a nossa felicidade. Acima disso não, ele pode até aumentar os índices de depressão. Em países desenvolvidos é crescente o número de pessoas deprimidas, mesmo tratando-se de nações ricas.
A sociedade anda ansiosa e deprimida, os profissionais da área de saúde mental já alertaram. Em 2017, eram 350 milhões de pessoas deprimidas no mundo, segundo a OMS. A mesma pesquisa indicou que a cada quarenta segundos uma pessoa se mata no mundo e a cada vinte segundos uma pessoa tenta o suicídio. A correlação disso com as cobranças de padrões inatingíveis nos dias atuais é estreita. Hoje há muita opção, muita competitividade, muita exigência, culto à celebridade, famosos que não desempenham nada para ter sucesso, profissionais ricos vendendo mais obsessão pela felicidade e pelo sucesso do que a receita do trabalho gradual, árduo e honesto.
Desde que nascemos somos alguém. Não é necessário para isso nenhum sobrenome, título nobiliárquico, propriedades, futuro promissor, nada. Já somos alguém independente de tudo isso. Há a ideia de que a felicidade vem quando você chega ao lugar x. O mundo cobra-nos um desempenho e de uma maneira muito pesada. Há uma cobrança acima do que conseguimos lidar e as pessoas sentem-se muito pressionadas a desempenhar bem, e com pressa, e sempre mais, porque na idade delas já era para ter feito um monte coisas, casado, tido tantos filhos, comprado casa e carro, estar em tal emprego e com tal salário… Sempre tentando “ ser alguém” e “chegar lá”.
Entender que esse é um universo criado, e portanto paralelo, é fundamental para não alimentarmo-lo. Ele definitivamente não é saudável, é adoecedor e está adoecendo as pessoas em escala global. Psiquiatras têm alertado que ao invés de cuidar bem de nosso interior, nossa mente e nossas emoções, não fazemos isso e ficamos tentando resolver fora questões muito secundárias. Se não resolvemos questões delicadas dentro, fora ficamos vazios. Se dentro estamos oco, como construir solidez emocional ao redor? Como ter conforto existencial se não temos autoconhecimento? Devemos trabalhar nosso interior, o autoconhecimento, a compaixão, a ação benevolente no mundo. Isso tudo gerará um crescimento interno e, como consequência, resultados externos ocorrerão. E mesmo que não ocorram, estaremos felizes pois estaremos fazendo algo que é realmente valioso e útil para nós.
Não precisamos fazer coisas, realizar muitos feitos ou atingir patamares para ter valor, para sermos felizes. No Brasil há uma grande procura atual pelo coach. As pessoas têm investido mais nesse profissional do que em terapia e isso é muito sintomático, pois embora a terapia não prometa resultados rápidos e milagrosos como o coach, é um processo mais demorado, duradouro e profundo para o ser humano. Infelizmente o público é seduzido pelos “show coaches” que prometem o mundo, palestras-espetáculo com conteúdos que causam mais efeitos visuais do que a profundidade que um trabalho sério precisa ter.
Diante desse contexto de feirões da felicidade, é trabalho de gotinha ir contra o oceano bravio e tratar cada pessoa como individuo entendendo seu universo, mapas mentais, objetivos, empoderá-las e não torná-las dependentes do trabalho do terapeuta ou do coach para sempre. Por mais que os amigos, a TV ou mesmo o mercado digam que somos menos do que outros, que nada somos ou que precisamos fazer algo para sermos alguém e chegar a algum lugar, compreendamos que não é verdadeiro, que não precisamos de realizações para sermos validados como bem sucedidos. Precisamos tão somente SER, entender as programações que limitam e causam sofrimentos. Enquanto não tocamos na ancestralidade de quem somos, procurar o hétero suporte é vão, ou seja, procurar o suporte externo e superficial de pessoas para conseguir se organizar rapidamente e colocar em prática o que se quer fazer.
O Coaching vem sendo vendido com a ideia de “ Você não pode ter uma vida medíocre, então precisa conquistar grandes feitos”, ” Seja um super-humano, um super-herói!”. Isso é um grande problema. É um foco desrazoável no material, nas conquistas financeiras, numéricas. O mais grave é que enquanto não alcançamos isso parece que a existência fica interrompida, que ainda não somos alguém. Dizemos: “Quero ser incrível!”, “Serei alguém quando eu atingir tal coisa” ou “Serei feliz quando eu atingir tal coisa”, e enquanto isso a vida vai passando. Quando a gente cai nesse conto moderno, passamos a vida aguardando, ansiando, consumindo. Passamos uma vida consumindo e em função dessas matérias – casas, carros, empresas – não aproveitamos, não saímos muito com os amigos, não tomamos muitos cafés com a família, não fomos a shows – cinemas, dissemos poucos “Eu te amo” ou “Você é caro para mim”, preocupamo-nos muito com pequenas coisas, ironizamos para mascarar verdades, protelamos para não fazer aquilo que achávamos inviável. Parece que esquecemos que a família forma a base que monta nossa existência, que amigos são a família que a gente escolhe ( a família do amor ). Também esquecemos que as melhores companhias são as que a gente mais ama e as que fazem a gente mais feliz, e não quem é isso ou aquilo, não quem tem isso ou aquilo. Também olvidamos que tudo que é imposto é passível de ser questionado ( e deve sê-lo, aliás) e do quanto o “poder” não passa de uma relação, de uma abstração – uma ideia boba e um faz de contas que só serve para manipular pessoas a fim de que elas se achem desiguais. Fomos enganados, em suma.
Eis a receita certa para uma sociedade doente: afastar-se do interior e buscar no exterior a sensação de equilíbrio entre as necessidades vitais. Sabe, não dá para confiar grandes coisas ao externo, pois ele é filho do acaso, e como cantou Dorival Caymmi na linda “Nem eu” :
“ … O amor acontece na vida
Estavas desprevenida
E por acaso eu também
E como o acaso é importante querida
De nossas vidas a vida
Fez um acaso também…”
Sim, esses vários acasos podem fazer da vida um brinquedo. No poema é lindo. Na realidade não.
A gente vai achando que não é alguém ou que não chegou a nenhum lugar. Pura ilusão. Em consequência disso a gente vai medindo a vida pela régua alheia, vai tentando chegar lá, vai vivendo insatisfeito, vai guardando toalhas e louças para usar em ocasiões que serão “especiais”, vai guardando a roupa mais alinhada para aquele evento único, vai guardando o quadro bonito para quando estiver naquela casa, vai deixando de fazer aquela ligação importante porque está esperando aquela data especial, vai deixando de aproveitar os dias com amigos e família porque não pode ir ao restaurante de que gostaria, vai deixando de ir à praia porque não tem o “corpo do verão”, vai deixando de cantar porque a voz não é bonita, vai deixando de dançar porque não é o pé de valsa que gostaria, vai deixando de amar porque o parceiro ou a parceira não são aqueles que sempre povoaram os sonhos, vai deixando de viver, enfim.
A vida é muito, muito rápida. E quando ela passar? Não podemos ficar esperando o momento ideal para ser feliz, o momento ideal para dizer “ Eu te amo”, para arriscar, para criar boas memórias – pra gente e pra os que ficarem quando a gente se for, para declarar ao mundo que existimos, para viver um dia a dia com mais carinho, amor, inteireza… Inteiros porque somos alguém.
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