Por Josie Conti
“Vou mostrando como sou e vou sendo como posso”*
A fresta da janela iluminada indica que o dia invadiu a noite e, mesmo com o quarto escuro, já não é possível negar a existência da luz que vem me dar bom dia.
O mesmo acontece quando nosso mundo mais íntimo e profundo recebe a visita da realidade; e a liberdade dos coloridos de nossas fantasias e máscaras interiores veste-se apressadamente com roupas normais, em busca de alguma adequação em um papel que, mediado entre o que achamos que devemos ser e o que conseguimos alcançar, vai se mostrando e dando forma ao que apresentamos ao mundo.
“Vou mostrando como sou
E vou sendo como posso,
Jogando meu corpo no mundo,
Andando por todos os cantos
E pela lei natural dos encontros
Eu deixo e recebo um tanto”
E, então, damos nossos passos e criamos nossos caminhos. Estabelecemos nossos laços e abraços. Nos enamoramos. Encantamo-nos com a vida; família; trabalho; amados e amigos.
Ah, mas as flores que nascem também têm espinhos e são nesses momentos que a ilusão da maturidade valsa num salão onde pensávamos tê-la como eixo inabalável.
Impaciência; intolerância; inseguranças e falta de empatia falam conosco em volume alto. E, num olhar mais atento, vemos que são com esses parceiros que dançamos de fato. A pessoa que se achava segura de si, então, sente ciúmes; o teórico e letrado se mostra analfabeto ao não conseguir articular um raciocínio que não vá de encontro ao seu; o grande escritor sente inveja de um colega cuja obra é também reconhecida e acaba por depreciá-lo sem necessidade; passamos pelas pessoas que sofrem e não lhes dirigimos o olhar.
“E passo aos olhos nus
Ou vestidos de lunetas,
Passado, presente,
Participo sendo o mistério do planeta
O tríplice mistério do “stop”
Que eu passo por e sendo ele
No que fica em cada um,
No que sigo o meu caminho
E no ar que fez e assistiu”
Não existe domínio completo e a ideia do domínio é o que mais nos engana, mas também é o que vem nos salvar. Salva-nos de nós mesmos ao nos dar uma ilusão de controle; e, no entanto, nos abandona em uma selva de mistérios onde não conhecer o poder da dúvida pode ser fatal.
A aceitação de nossa instabilidade e constante evolução e involução é a chave mestra que permeia o crescer. Nunca sabemos quando nossas carências e feridas internas serão tocadas. E, nessa jornada, nos tornamos vilões e heróis de nós mesmos. Damos e recebemos. Acertamos e erramos num sem fim de ações mais ou menos reflexivas.
“Abra um parênteses, não esqueça
Que independente disso
Eu não passo de um malandro,
De um moleque do Brasil
Que peço e dou esmolas,
Mas ando e penso sempre com mais de um,
Por isso ninguém vê minha sacola”
Somos, no fim, o que podemos. Crianças que se tornaram adultos. Adultos que, por vezes, agem como crianças. Seres absolutamente imperfeitos em jornada. E, por que não dizer… Malandros que enganam, mas que também são enganados, pois oscilam entre a malícia e a ingenuidade. Por isso não há lugar para vaidades. Basta reconhecer.
Na versão abaixo Marisa Monte cantando com os Novos Baianos
*O título do texto é um verso da música Mistério do Planeta, composição de Luis Galvão e Moraes Moreira. O texto segue inspirado e agraciado com versos intercalados da canção. No final, uma versão da música gravada por Novos Baianos com participação de Marisa Monte.
Imagem de capa: Zolotarevs/shutterstock
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